Samuel não chegou a ler o que escrevi em resposta a este seu
último e-mail. De vez em quando releio
tudo que escrevemos um ao outro, e posso ouvir ele dizer, de viva voz, o que tá
escrito. Meu ouvido fica escutando, escutando a voz boa do Sam me contando ou
explicando coisas de livros e de gentes, e dos progressos dele com as pernas.
Sento na varanda pra esperar a boca da noite soltar os pirilampos pra
passearem. Nunca vieram tantos pirilampos como agora, como coisa que querem me
ajudar a tomar conta da saudade de Sam.
Às vezes me sento na varanda e imagino o Sam chegando, ele sozinho, sem
a cadeira, em cima dos dois pés. A gente se abraça e ri um monte. E ele diz: eu não disse que eu já vinha? E aí
vai vindo todo mundo ver que algazarra é aquela na varanda e fazem a maior
festa pro Samuel. Fazem tanta pergunta que eu tenho que dizer, calma, gente, o
Sam vai ficar as férias todas aqui, perguntem devagar, por favor.
Depois correm todos buscar algum agrado pro Samuel; meu tio Pedro traz
um prato de uvas pretas, o Eduardo traz carambolas, a minha vó oferece bolo, a
Leonor corre botar a rede pra ele descansar da viagem longa. A Rosana chega da
cidade, pula da caminhonete e abraça o Sam com altos risos de alegria de
chegada; ele até se atrapalha com tanta atenção. Depois a gente bota a bagagem
dele num canto da sala, sai correndo pra lagoa verde e só volta quando
escurece. E todo dia é a mesma coisa: só voltamos pra casa pra fazer as
refeições.
Ou se não, ele aparece nos meus sonhos; vem andando e rindo, e me abraça
e pergunta de todo mundo. No sonho, ele tá vivo, e eu nem lembro que ele foi
atropelado, em cima da faixa de pedestres, por um motorista bêbado; nem que ele
e as muletas voaram para longe.
_ Você não respondeu meu último e-mail – ele me diz.
_ Respondi, sim, mas o aparelho
tava ruim, não tava enviando as mensagens, e a resposta tá guardada na caixa de
saída.
_ Você vai deixar essa mensagem
na caixa de saída pra sempre, Bia? Voc~e precisa dar um jeito de mandar ela pra
mim.
Aí conto que li O Jardim Secreto que ele citou no e-mail e falo do tanto
que esse livro cobre a gente de verde, de pétala de rosa, de canto de
passarinho, de música de abelha, de cheiro de flor silvestre...
_ Ah, que bom que você leu esse livro, Beatriz! Eu tô indo embora
justamente pra esse jardim secreto.
_ Como? Se o jardim secreto é do Colin, do Bem, da Mary e do Dickon?
_ Eu li o livro, então, o jardim secreto é meu também.
_ Você não volta nunca mais?
_ Nunca mais!
_ Ah, não, não pode ser pra nunca
mais. Tinha que ser só de passagem... “ a passagem dá passagem, mas é só de
passagem”, você não lembra?
_ É quer agora vou viver pra sempre, Bia, então escolhi morar num jardim
secreto, entende? Me diga: existe melhor lugar pra se viver pra sempre do que
um jardim secreto?
_ É, acho que não existe mesmo. No dia em que eu for viver pra sempre eu
também vou escolher um jardim secreto pra morar, e aí a gente vai poder se
encontrar de novo, não é?
_ Sim, vamos nos encontrar no jardim secreto um dia... Até lá, procure
ser feliz, Bia, e não esqueça tudo que conversamos. Sabe aquela tua ideia de
ser arquiteta pra arquitetar umas coisas legais para as pessoas com deficiência
poderem ir e vir no mundo? Se você virar mesmo arquiteta, não esqueça disso,
tá?
_ Não vou esquecer. Nem que eu não vire arquiteta, eu nunca vou
esquecer, Sam. Você promete vir, de vez em quando, contar como é viver num
jardim eterno?
_ Prometo que venho. Você vai
ouvir a flauta... aí vai saber que sou eu que tô vindo...
_ A flauta?
_ É. A flauta do Dickon, de encantar animais. Vou aprender a encantar
animais, principalmente os que mais me encantam, que nem as cutias e os esquilos.
O Sam vai indo, e dando tchau com a cara de “que pena que a gente tem
que se separar” e vai sumindo, sumindo no final do meu sonho.
BOCHECO, Eloí Elisabete. Beatriz em
trânsito. Belo Horizonte: Dimensão, 2006, P. 53-55