quinta-feira, 30 de março de 2023

quarta-feira, 29 de março de 2023

Rimas e Números


Obra selecionada no PNLD 2023  - Código 0940P230301000000

A tradição oral   é pródiga em rimas e números,  apresentados em quadrinhas, parlendas, trava-línguas, cantigas, provérbios  e brincadeiras diversas. Dentre outras experiências lúdicas, vividas pelas crianças camponesas, contar e rimar era uma  prática constante, usada pelos mais velhos,  para transmitir às crianças, as primeiras noções sobre numeração.  Aprendíamos sobre quantidade e duração em quadras graciosas, inspiradas nos ritmos e ciclos da própria existência.

O livro  Rimas e Números recria parte dessa experiência brincante, usando a linguagem  e o  procedimento poético, assimilados afetivamente,  nessa vivência com a poesia oral de outrora.

Ilustrações da  artista Márcia Cardeal.

Editora Cuca Fresca: 

https://www.editoracucafresca.com.br/




 

 

 

 

 

quarta-feira, 15 de março de 2023

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Leituras compartilhadas


Trecho de Beatriz em trânsito
( Dimensão, 2007)
CONVERSAS COM GUIOMAR
A mudança pra Santo Antônio dos Campos me pegou na metade da terceira série. Nunca pensei que eu ia sentir tanta pressa de chegar o outro ano, pra ir pra quarta. Por causa da Guiomar. Ela dá aulas nas quartas séries.
Sempre arrumo um jeito de ir na classe dela, no final das aulas. Ela fala com jeito de era uma vez... Quando entro na sala o meu olho vai direto pro armário bege perto da janela. É nele que a Guiomar guarda os livros que vejo os alunos dela lendo com caras de contentes. Na minha sala não tem armário bege, nem verde, nem amarelo, nem armário nenhum cheio de livros.
Ela viu o meu olho grudado no armário e perguntou:
_Você queria levar um livro daqueles pra ler em casa?
_ Queria.
_ Então vem cá, e escolhe um do teu agrado. O que você gosta de ler?
_ Gosto de um que tenha coisa pra rir e pra suspirar.
_ Ah, sei...
Ela me aponta um de capa azul, outro de capa com vários amarelos, e mais outro e mais outro. Este sim, e este não, este é cor de macarrão! Escolho um que é cheio de olhos de tigre na capa.
Na tua casa gostam de ler? – ela me pergunta enquanto coloco o livro na mochila.
_ Hum, se gostam! São agarrados em livros que nossa! Meus tios é mais com livros e revistas sobre agricultura porque eles cultivam plantas sem botar veneno e vivem querendo saber mais sobre isso.
_ Orgânicas.
_ É, isso aí. Então vivem lendo pra saber mais sobre esse negócio de orgânicas, como produzir mais , essas coisas.. Às vezes lêem outros livros também.
_ Anhã..
_ Tipo um livro que a namorada de meu tio Pedro deu pra ele ler e disse: Pedro, você precisa ler este livro, e botou na mão dele, chama-se As Mulheres que correm com os lobos o tal livro.
Ele não queria ler, reclamou que o livro tinha muita página, que, pelo nome, devia interessar pras mulheres e não pra ele: se as mulheres correm com os lobos ou com os tigres, o que que me interessa? – falou rindo. Ela insistiu , falou que interessava pra homem sim, que homem tinha que conhecer a alma feminina, pra saber ser companheiro e não um barba azul qualquer, desses que tratam a mulher como um parafuso de porta.
_ Eu te trato como um parafuso de porta , Lia? Eu faço tudo que você quer...
Pensei que ele não ia ler aquele livrão todo, mas leu, à noite, depois que fechava as contas dos orgânicos.
A minha vó é a mais ledora lá de casa. Tem sempre livro perto dela, e as minhas tias também. Menos a Rosana, a mais nova. Não que ela não goste de livro, o problema é que ela não tem tempo de tanto que namora. A cada semana ela vem com um namorado diferente. Os namorados da Rosana já ocuparam quase todas as letras do alfabeto. Até namorado com ipslon ela já teve! A gente cansa de dizer “prazer em conhecer” pra tanto namorado novo da Rosana. Se não puder dar as cartas, como diz a minha vó, a Rosana já despacha os namorados. É tanto tempo que a Rosana gasta pra ficar bonita pra esses namorados todos, que minha nossa, não sobra tempo pra muita coisa.
Quando vai se arrumar, às vezes ela me chama: venha cá, Biazinha ( detesto que me chamem de Biazinha) e me diga o que acha desta blusa ã? Eu sei lá de blusa? Digo que tá bonita e pronto.
Às vezes eu tô lendo e a minha vó fala: Beatriz, vai entregar umas encomendas pra mim?
_ Agora eu não posso vó.
_ Por que não pode?
_ Não tô em casa, tô em Taipirum.
_ Onde?
_ Em Tatipirum, na terra dos meninos pelados, não lembra do livro do Graciliano Ramos?
_ Ah, tá!
Ou senão eu digo que não posso ir fazer as entregas porque tô vendo um Namorinho de Portão...
_ Que namorinho, menina?
_ O de portão, do Elias José, ora!
_ Ah, claro!
Se tô com livro, ela não insiste pra eu entregar chapéu, nem bolsa, nem porta-retrato, nem de fibra, nem de linha, nem de vime. Como coisa que ela não quisesse me separar de livro por nada deste mundo.
A Leonor é super ligada em livros de bruxas, casas mal assombradas, fantasmas, esses lances de seres do além. Fala que as bruxas foram injustiçadas, queimadas na fogueira por pura ignorância. Que bruxa é devota da natureza, da terra, das plantas, das coisas do universo, enfim. Ela fez um oráculo no quarto dela e bota lá as coisas que vai aprendendo nesses livros: pedras, plantas e outras coisas que não me lembro. O quarto dela cheira alecrim. Sempre ela bota um galho de alecrim num copo de vidro claro. A minha vó não acha muita graça nesse negócio de oráculo de bruxas, ela é mais de religião de igreja, mas ela nunca contraria a filha. As duas são unha e carne.
A Leonor é uma moça meio nova, meio velha. É moça, mas não tão moça, sabe como é? Ela é mais alta do que você, Guiomar. Quanto é que você tem de altura?
_ 1,70.
_ Então ela deve ter 1.80, por aí. Pois é, com todo o tamanhão dela, de vez em quando ela deita no colo da minha vó e pede pra massagear os cabelos, porque tá triste. E a minha vó massageia, massageia. Às vezes a Leonor chora no colo da minha vó e eu não sei por quê. Tem umas coisas que parece que são mais de perguntar e não de entender.
A Guiomar alisa com a mão o meu chapéu:
_ É bonito. Que fibra é essa?
É de caule de bananeira. A minha vó e a Leonor fazem tudo que é coisa com essa fibra. Fazem coisas de vime e de linhas também. É assim: se a gente muda prum lugar que dá bem a bananeira, elas inventam coisas com o caule dessa planta, senão, elas inventam com vime, e senão elas fazem coisas com linha e agulha.
As mãos delas não param nunca de tirar coisas da fibra, ou do vime, ou das linhas. Ganharam um prêmio muma feira da cidade e aí mesmo é que elas se assanharam com esse negócio de trançar e tramar.
_ Pelo que você fala elas gostam mesmo de trançar e tramar...
_ Ih! elas a-do-ram.
_ E você gosta do quê?
_ Gostar de fazer?
_ É.
_ Ah, gosto de ficar olhando a minha vó trançar chapéu. Meu olho vai trançando junto com a mão dela. Ela termina um chapéu e o meu olho também termina.
Mas também gosto de fazer coisas com o olho olhando e a mão pegando, que nem arrumar os orgânicos nas embalagens. Gosto mais de arrumar o milho verde, a cenoura e a beterraba porque tem bastante cor, e dá mais graça ir empilhando numa pilha bem comprida.
Gosto de ir com a Rosana entregar os orgânicos nos supermercados, mas é só de vez em quando que a minha vó deixa. Demora um monte pra ela deixar. É por causa do roubo de crianças que ela tem medo. Fala pra não sair de perto da Rosana, andar agarrada nela, não dar confiança pra estranho, se se perder é pra ficar parada no mesmo lugar, que senão a Rosana não me acha, se chamarem pra tirar fotografia não é pra ir, se oferecerem bala de goma ( que eu adoro) não é pra aceitar.
A Rosana vai ligando a caminhonete e vai roncando e vai dizendo, eu sei, mãe, eu sei, mãe, e vai saindo porque senão ela nunca que termina de fazer as recomendações, e ainda grita alguma coisa de longe que a gente nem escuta mais.
Uma coisa que eu gosto, mas também, às vezes, desgosto, é de pensar nas palavras. Tem horas que não quero pensar, mas penso sem parar numa palavra, que nem luva, que é uma palavra que cabe, ou rio, que é uma palavra sempre indo. Já giz é a palavra com mais cara de giz que existe. Você não acha, Guiomar?
_ O quê?
_ Que giz tem cara de giz?
_ É verdade, giz tem cara de giz mesmo.
_ Por que será que a gente fica tipo perseguido pelas palavras?
_ Perseguido?
_ É. As palavras me perseguem. Tô fazendo os deveres e de repente me vem a palavra grisalho, por exemplo. Onde ouvi? Ah, sim, meu tio disse que tá ficando grisalho. Não quero pensar nessa palavra e penso. Preparo um copo de nescau pensando grisalho, pego o pão pensando grisalho, volto aos deveres pensando grisalho. Por que não me larga, grisalho? Meu pensamento fica pensando até não poder mais na palavra. (Vó, me acuda, que o grisalho quer me pegar. Quem? O velho do açude? Não, a palavra grisalho!) A Leonor diz que é o meu signo que me faz pensar tanto nas palavras, ( e não dá pra mudar de signo pro grisalho me deixar em paz?).
Uma vez a Leonor disse que a minha mãe entrou num redemoinho e não pôde mais sair, por isso tirou a própria vida. Foi eu ouvir isso e o redemoinho virou que nem o grisalho, não me largou mais. Me escondo na plantação de figos com o redemoinho atrás. Corro pra baixo das carambolas, o redemoinho me agarra. Não, não, cara de pavão! Mergulho na lagoa com o redemoinho girando, me jogo na grama e a grama tá cheia de redemoinho, rolo pelos morros e só ouço redemoinho, redemoinho. (Vó, socorro, o redemoinho tá acabando comigo! Como? Nem tá ventando, Beatriz. Mas, tá redemoinhando, tô dizendo, eu tô cheia de redemoinho. Será que ele vai me lavar como levou minha mãe moça, vó? Deixe disso, venha cá que vou te contar uma história que não tem redemoinho...)
A Guiomar se levanta pra fechar as janelas que já anoiteceu. Saímos pro pátio e eu digo tchau com pena de sair de perto dela.
BOCHECO, Eloí Elisabete. Beatriz em trânsito. Belo Horizonte: 2007, Páginas 20-23

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Flores, afetos, memória

 


CANTORIAS DE JARDIM, de modo lúdico e afetivo, enlaça poeticamente um ramalhete de flores através de poemas inspirados na poesia oral do folclore.
O narrador poético conversa com as flores ( rosa, cravo, lírio, amor-perfeito, margarida, jasmim e demais flores do feixe poético), conta seus segredos e magias e, por vezes, chama o leitor para participar da cena poética, ora ofertando-lhe a flor homenageada, ora propondo um jogo de adivinhação, ora advertindo-o para perceber a flor, tal como faziam os cantores peregrinos e singelos de outrora.




Uma das primeiras visões que uma criança camponesa tinha em Duas Pontes, onde passei a infância, eram as flores nas paredes, nos canteiros, nas cercas das varandas, nos caramanchões. Os jardins surgiam das trocas de “mudas” entre os moradores. O ritual de receber a muda ( uma semente, um galhinho, um bulbo, um ramo) preparar a terra, plantar, cuidar e esperar a floração era um modo mágico de alimentar as amizades, os afetos  e o gosto de viver.

Esse jeito de criar jardins eu achava fascinante ( e ainda acho). Assim, em Cantorias de Jardim, meu quinto livro pela Paulinas,  homenageio, em versos, as flores que me viram crescer e me acompanharão pela vida afora. O procedimento poético e a linguagem para compor o ramalhete fui buscar nas  fontes da  tradição oral,  cuja singeleza e brilho faz par com as  flores vivas  da memória.



“Acordar com cantorias de açucenas faz lembrar minha vó Luiza que, aos noventa anos, guardava sementes e nos dizia: “ plantem para o mundo”. Ela acreditava que muitos seres iriam admirar por ela. Faz lembrar minha mãe que caminhava quilômetros em busca de uma muda, sementes, ou uma folhinha de begônia, violeta, plantas variadas e esperava florescer. Lembro de ouvir minha mãe ao telefone com minhas tias: “me arruma uma mudinha de antúrio branco, outra do bem vermelho, tenho outras cores e posso te passar”.
Parabéns, Eloí, por juntar tantas flores e semear no mundo através do livro Cantorias de Jardim”.       
Maria Salete Constantino Ramos

Professora em São José/SC


domingo, 29 de janeiro de 2023

Flores vivas da memória



 







 




 


Coisas que inspiram



                                                    

                  Crônica contemplada na antologia de crônicas do Prêmio OFF FLIP 2022

                                                   

                                               COISAS QUE INSPIRAM


Num dia de caminhada pelo quarteirão, vi dois meninos juntando embalagens e outros materiais que os descuidados jogam nas beiras das ruas. Os garotos, munidos de garfos compridos, catavam os resíduos uma a um. Graças ao comprimento do garfo, conseguiam catar coisas jogadas a grande distância das beiras. Faziam a catação com o maior requinte. Depositavam em sacos cada espécie de resíduo, conforme fossem lata, plástico, papel ou vidro.

 Interrompi a caminhada para contemplá-los. Os meninos brilhavam sob o sol de setembro.   Aproximei-me e perguntei se a catação era uma tarefa da escola. Disseram que não. Estavam fazendo o trabalho por gosto mesmo, por vontade de ver o quarteirão limpo: “porque a rua limpa é mais legal e mais bonita”.  Também indaguei se faziam isso sempre.  Responderam que aquela era a quarta limpeza que faziam. Dei-lhe muitos e alegres parabéns pela atitude. Agradeci em nome de todos os moradores das imediações, inclusive dos mal-educados que atiram carqueramas nas ruas da cidade.

  Depois disto continuei a caminhada em direção ao morro de Mariscal. Quando voltei os meninos tinham sumido da paisagem. O quarteirão estava limpo e brilhando. Os meninos, com seus maravilhosos garfos ecológicos, deram uma lição de beleza e cidadania. Atitudes sensíveis como esta renovam a esperança em dias melhores na face da terra, dias em que a vida seja valorizada, a vida, a vida reinventada como diz a profecia poética de Cecília Meireles.

  Em vários pontos deste mundo, meninos e meninas admiráveis, como estes garotos de minha cidade, praticam atos anônimos de amor e cuidados  pelo outro, seja o outro bicho, gente, planta, água, florestas... Tenho notícias de pequenos cidadãos criando bibliotecas nos lugares mais inóspitos, fazendo trabalhos em hospitais e casas de idosos, alfabetizando pessoas, plantando árvores em terrenos devastados, promovendo campanhas pela paz, lendo para pessoas com deficiência visual, ajudando colegas com dificuldades na escola,   anônimas ações que brilham em meio ao caos e à barbárie de nossos dias tão marcados por crueldades contra o outro.

  Torço para que estes pequenos cidadãos  se multipliquem, se tornem uma legião muito mais forte e poderosa do que a  dos adeptos do bullyng e de  toda espécie de crueldade contra os viventes.  Que a luz destes pequenos paladinos resplandeça e contamine o mundo com a palma da delicadeza e a alegria do bem-querer.