Para Ana Schirley Favero
Ela era bem nova quando a vi entrar na classe do antigo ginásio da Escola Juçá Barbosa Callado, pela primeira vez. Usava uma saia enxadrezada em verde e bege e uma blusa amarelo-queimado. Trazia um arco de vidro nos cabelos e usava sandálias marrons de salto alto. Essa primeira visão dela permanece viva ainda que tenham se passado quarenta anos desde esse dia. Ela própria me diz que não se lembra mais de ter tido essas peças de vestuário e, no entanto, eu lembro tão bem.
Ela era bem nova quando a vi entrar na classe do antigo ginásio da Escola Juçá Barbosa Callado, pela primeira vez. Usava uma saia enxadrezada em verde e bege e uma blusa amarelo-queimado. Trazia um arco de vidro nos cabelos e usava sandálias marrons de salto alto. Essa primeira visão dela permanece viva ainda que tenham se passado quarenta anos desde esse dia. Ela própria me diz que não se lembra mais de ter tido essas peças de vestuário e, no entanto, eu lembro tão bem.
Chegou com os braços cheios de livros: era sempre este o seu modo de chegar. Apresentou o livro-texto de Antônio Ravanelli, que usaríamos em sala. Até hoje procuro nos Sebos a coleção, para quinta a oitava séries, deste autor. Usava pouco esse livro, o didático. Era apenas um recurso a mais em seu estoque de feitiços para nos apaixonar pela leitura. Era uma mestra cheia de cuidados com a criação da memória literária de seus alunos. Tinha o formoso costume de ler poemas, crônicas e livros aos capítulos, em voz alta para a classe. Creio ter sido este o maior feitiço de todos. As palavras cresciam na voz dela – até um texto insípido do livro didático de antanho brilhava. Aquelas sessões de leitura me deram as primeiras noções intuitivas dos poderes das palavras, do quanto elas podiam ser arrebatadoras.
Ela própria se deliciava com a leitura que fazia. Não era só a apresentação de um texto: era a repartição de um sonho. Lia em transe, possuída, a muitos palmos do chão carcomido da sala de aula.
Entre as palavras abriam-se vãos mágicos que nos puxavam para o alto como ímãs. Por instantes, esquecíamos as carteiras riscadas, as vidraças em pedaços, a sala feia, o quadro de giz esburacado. Havia pontos em nós que faiscavam de possibilidades. Era como se ela dissesse, através de seus rituais de leitura: “o caminho do sonho é por aqui, crianças!”
Muitos textos que ela trazia para a classe eram datilografados em estêncil, na máquina de escrever, e impressos em mimeógrafo a álcool. Na folha branca, em letra azul, o poema, o conto, a crônica, o excerto da obra vinha a nós com muito capricho e cerimônia. Ela os entregava de carteira em carteira, depois dobrávamos e colávamos no caderno de linguagem.
Após este ritual de dobrar e colar o texto, ela fazia a primeira leitura. O Cajueiro, de Rubem Braga, na leitura dela, caía devagarinho sobre a casa do autor, com tal delicadeza que era impossível não se apaixonar pela árvore, mesmo morando numa região onde nunca se viu um cajueiro.
Com voz apaixonada, ela golpeava a rotina com a flecha luminosa da palavra literária. Esta saraivada de luz nos atingia em cheio e atiçava o desejo de ler e buscar outras leituras onde quer que estivessem.
Apresentou Cecília Meireles à classe com grande enlevo e intróito apaixonado pela vida e obra da escritora. Lia os textos da autora na altura e na maciez apropriadas às palavras de seda da escritora.
Por entre as letras azuis, na folha branca acetinada, surgia o Anjo da noite, o inesquecível guarda-noturno. Na visão poética de Cecília Meireles e na voz da mestra - sintonizada com a respiração da crônica - os passos do guarda ora se afastavam, ora se aproximavam. Em algum parágrafo ele apitava, em outro, um gato retardatário pulava o muro. Sob nossos pés, a rua, sobre nossas cabeças a noite profunda. O guarda-noturno, Anjo da noite, cuidava do sono das gentes. A mestra cuidava de nossa memória literária e abria ruas sem fim em nossa imaginação.
“Vamos ouvir Canção excêntrica”. "Ando à procura de espaço para o desenho da vida/em números me embaraço e perco sempre a medida"... Os versos caíam sobre nós. Os olhos da mestra perscrutavam as feições. O que seria excêntrica? Ela não explicou naquele momento, acho que para não esmaecer o clima lúdico. Ela era toda finura com a palavra poética. Quem precisava saber o que era excêntrico para voar com as asas que saltavam dos olhos dela, tão embriagados no instante lírico como os nossos? Mais tarde ela contou sobre o excêntrico. Entendi que ela própria era assim, de tanto amor pelas palavras. Amor excessivo. Benditos excessos os dela!
As leituras nunca aconteciam num dia marcado. Ela gostava de nos fazer surpresas. Podiam acontecer numa terça-feira calma, numa sexta em que caiu o muro da frente da escola, numa quarta em que o Rio Pelotas transbordou, numa segunda-feira de enormes saudades de alguém que partiu, numa quinta sem nada para comemorar.
Nossos ”corações inquietos e perturbados com a passagem e o tropel das coisas do mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam", como diz no Sermão da Sexagésima, de Pe. Antônio Vieira, esperavam pelos finos repastos que ela ofertava.
Um dia trouxe um livro de Cecília Meireles que era, no formato, tal qual um caderno de desenho. Quando abriu e leu o primeiro poema fiquei atônita: não era um caderno de desenho: era um porta-jóias! A primeira jóia que brilhou foi um colar de coral. Nunca eu tinha visto um poema incendiar. As paredes da sala, há mil anos sem pintura, mergulharam em luminosidade. A profa. leu e releu deliciadamente. A cada leitura, as imagens ficavam mais nítidas, como se ela desse lápis-de-cor à voz e fosse desenhando o poema no ar. Via-se que a mestra era devota daquele colar. Devota do mesmo colar também me tornei.
Do porta-jóias caíam rubis: “Rolam rubis rubros do céu”. "Abre-se a romã/Abre-se a manhã”. Até o apagador, na beira do quadro, cintilava. As aulas eram noturnas, mas, dentro de nós, o sol brilhava.
A linguagem tinha um outro modo de dizer. Um outro semblante: mais vivo e mais luminoso. Para esse outro universo da linguagem a mestra nos levava para passear. Eram momentos de feriados da linguagem referencial. Ela sabia o quanto estes passeios podiam avultar nosso desejo de beleza e de liberdade.
A vida não precisava ser só o puro chão. Outro desenho era possível. "Uma pena a vida ser só isto!" Os versos de Cecília Meireles se aplicam bem aos dias de pobreza simbólica em que vivemos, tempo pródigo em atrativos para os olhos biológicos. A jovem mestra, pressentia que só os olhos biológicos não bastam: "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores" – como lemos em Fernando Pessoa, seguido de perto por Mário Quintana em "uma vida não basta apenas ser vivida, também precisa ser sonhada." Havia outros modos de ler o mundo que fugiam ao óbvio, e isso ela mostrava ao nos conduzir pelos territórios lúdicos da imaginação.
Tenho saudades da moça com arco-de-vidro nos cabelos, que chegava sempre com os braços cheios de livros e lia, com voz apaixonada, seus autores prediletos, os melhores da literatura nacional e estrangeira. Ainda hoje, quando releio certos livros, ouço-a, ao fundo, ler passagens marcantes, diálogos, descrições. A voz dela ficou gravada a sonho e se mistura com poemas, contos, crônicas narrativas. Não poucas vezes paro para ouvi-la novamente e noto que a voz não envelheceu.