domingo, 23 de setembro de 2012
quarta-feira, 5 de setembro de 2012
Quando a imaginação dá as tintas....
Vinicius Linné ( Habilis, 2012)
Em A menina que podia voar, o autor, Vinicius Linné, surpreende
já na dedicatória:“para uma borboleta,
uma mariposa e um mandarim”.
A história é narrada, ou melhor,
cacarejada por uma galinha mais velha às galinhas mais moças. Não se trata, contudo, de uma história sobre galinhas, mas sobre gente.
A menina que podia voar e um dia
voou, é aluna de uma professora autoritária,
que separou a classe em “aviões”, “carros” e “carroças”, outro nome para
fortes, médios e fracos. Estigmatizada como lenta porque não atende às
expectativas da professora, a menina e seu amigo, também tido como lento,
sentam-se na última fila e, deles, nada
espera a “mestra”.
De tanto ouvir que é lenta, a menina
incorpora essa imagem. Porém, ela tem à sua disposição os campos imensos da imaginação. Nesse território de liberdade,
o estigma não a alcança. Levada pelo
vento, voa para muito longe do chão. Entre passarinhos e borboletas brinca de
esconde-esconde, pega-pega e passa-anel. Chega à fábrica de tinta das nuvens e
recolhe tintas de todas as cores. Quando volta à terra pede à madrinha para pintar um retrato dela, da menina, com as tintas que trouxera do céu. Mas a madrinha não acreditou nos voos da
menina e nem que as tintas que trouxera
eram tintas celestes.
Perante a madrinha não conseguiu voar.
Mesmo que voasse, ao que tudo indica, a
mulher não enxergaria, pois tem o olhar
viciado na rotina, pouco afeita a voos e sobressaltos. Porém, a sós com sua imaginação, a menina voou e
brincou de viver em outros mundos, onde o que é tocado pela linguagem se
transforma em possibilidade de ser.
Um texto forte que traz um olhar sobre
a diferença e o sofrimento de quem não
cabe nos padrões eleitos como “normais”, aceitáveis ou desejáveis pela
sociedade de humanos. É também um texto que celebra os poderes da imaginação,
como chão mágico onde cresce o sonho e a vontade de viver, a despeito da realidade
esmagadora como a da personagem. Felizmente, “ela podia voar”....
domingo, 1 de julho de 2012
Palavras - a fisionomia poética
“Poesia é um entrosamento de palavras que se juntam e deixam você
fascinado”. Ouvi de André, 5º série, esta
definição de poesia. Dita e vivida: o menino deliciava-se com seus
poemas preferidos. Exerciam tal fascínio sobre ele que dezenas de vezes os lia,
tomado de encanto. A Estrela, de Manuel
Bandeira, estava entre os seus preferidos. Aquela “estrela tão alta e tão fria”
baixava das alturas na palma da mão do menino:
que coisas primeiras e penúltimas estrelavam na alma dele cada vez que
lia de novo? – eu me perguntava, vendo-o ler para a classe toda. Lia outros
também, porém, este o tinha devorado inteiramente.
“Poesia é música? É que nem música!”
- foi a conclusão de Ramon ao ouvir os poemas do livro Ou Isto Ou
aquilo, de Cecília Meireles. Patrícia, em processo de alfabetização, descobre O
Jogo e a Bola, do mesmo livro: “Fui pra casa e tentei ler sozinha. Fiquei
tentando até tarde, até que consegui”. Todos os dias pedia-me para ler de novo
este poema e ouvia-o, enlevada, o olho indo e vindo em passeio pela atmosfera
lúdica do texto.
Patrícia repetia a 1º série há cinco anos quando me propus a ajudá-la.
Não tenho dúvidas de que a poesia contribuiu para que ela deixasse para trás o
fastio dos textos mecânicos da cartilha, repetidos anos a fio sem resultados,
causando-lhe um enorme prejuízo à auto-estima:
“ não adianta você querer me ensinar a ler, eu não vou aprender, não tenho
cabeça para o estudo” – fala que introjetara de tanto ouvir os adultos próximos
repetirem.
Ao atualizarmos juntas a beleza, a emoção, a musicalidade da palavra poética
ela foi percebendo a diferença e desejando aprender o mais rápido possível para
ler sozinha aqueles textos que transbordavam de ludismo.
As crianças sentem que na poesia as palavras dizem mais, dizem diferente; na poesia as palavras brincam de
roda e, ao rodar, emitem faíscas, cintilam, “banhadas por uma luz antiqüíssima
e ao mesmo tempo acabadas de nascer”.
Arrisco-me a afirmar, com base na experiência, que é muito raro uma
criança descobrir a poesia e não se encantar. Infelizmente o encontro da criança
com a poesia ainda é muito raro. Mas,
quando ele acontece, a corrente de
paixão pela leitura se fortalece e é comum que elas desejem ler outros textos
poéticos.
Se poucos livros de poesia houver na biblioteca da escola, o
bibliotecário poderá se ver em apuros, pois, lançado o pacto lúdico com a
poesia, os meninos e meninas envolvidos costumam ser ( felizmente) muito
insistentes e, se já tiverem lido todo o acervo ( em geral escasso), virão à
porta da biblioteca todo santo dia perguntar: “chegou livro novo de poesia?”
A insistência pode virar algo mais forte a ponto de alguns livros de
autores muito amados serem disputados a tapas. Alguns resolvem que não vão mais
devolver o livro: “Ah, perdi!”, “Deixei na casa da vó”, “Ficou em outra
cidade”. Tudo pra não se separar do livro de poesia, livro que, afinal de
contas, brinca, canta, dança e embala, como diz a educadora Ana Schirley:
poesia é balanço nos galhos da goiabeira, ou como nos ilumina José Paulo Paes:
Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.
Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.
As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.
Como a água do rio
que é água sempre nova.
Como cada dia
que é sempre um novo dia.
Vamos brincar de poesia?
Em reinos como o da literatura, da poesia, é a palavra sonhada que nos recebe à porta. Palavra mutável, rica, dinâmica, plural:
Abre-se a romã
Abre-se a manhã.
Palavra sonhada, vida sonhada. Então o poeta Mário Quintana já não disse
que “uma vida não basta apenas ser vivida também precisa ser sonhada”? Voar
numa revoada de poemas: mudar de lado o coração para pulsar no justo ritmo de
uma palavra sonhada, descobrir o “outro” de si o “outro” dos mundos, trazer
para perto as terras estranhas, remotas ou obscuras, alargar o olhar pra lá, pra cá, pra além...
Quando a palavra é tocada pela poesia
se potencializa e cria a vida nova. As nomeações simbólicas têm o poder
de subverter a ordem linear fixadora de sentidos. Liberta dos elos opressivos
das convenções da lógica racional, a palavra reconquista a face mágica, o vigor
mítico das origens e mostra-se em plenitude.
“A palavra, finalmente em liberdade, mostra todas as suas entranhas, os
seus sentidos e alusões, como um fruto maduro ou um foguete no momento de
explodir no céu” ((Octávio Paz, 1992, p.26)
É outro o semblante da palavra na poesia, e este semblante a criança
reconhece e rapidamente com ele se identifica. Huizinga (2000, p.133) dá
ciência de que “ a poesia se exerce no interior da região lúdica do espírito,
num mundo próprio para ela criado pelo espírito, no qual as coisas possuem uma
fisionomia inteiramente diferente da que apresentam na vida comum, estão
ligadas por relações diferentes das da lógica e da causalidade”. O saber
intuitivo, o ludismo sonoro e semântico da poesia encontram ressonância no solo
lúdico da infância, por isso, é recebida com encantamento e adesão afetiva.
Quando o aluno da primeira série da professora Maria Salete Ramos,
interrompeu a leitura do livro de poemas que ela estava apresentando à turma,
ficou de pé, de repente, e gritou: “Esse livro eu quero ler! É esse mesmo! É esse que eu quero ler!”-
reconheceu, com surpresa, o semblante mágico dos textos e nem conseguiu esperar
a leitura acabar para expressar sua emoção, seu fascínio, e o desejo de tomar
nas mãos o livro e provar por ele mesmo do repasto lúdico.
UM POEMA QUE
INCENDEIA
COLAR DE CAROLINA
Com seu coral de coral
Carolina
corre por entre as colunas
da colina
O colar de Carolina
colore o colo de cal,
torna corada a menina.
E o sol, vendo aquela cor
do colar de Carolina,
Põe coroas de coral
nas colunas da colina.
Tive uma aluna no curso de magistério que, ao ler este poema de Cecília
Meireles, declarou que se via correndo junto com Carolina “por entre as colunas
da colina” e que, sempre que pensava no poema, se via assim. Tinha se atirado
para dentro do texto de corpo inteiro.
Como outros textos do livro Ou Isto Ou Aquilo, Colar de Carolina é um
poema-aparição, pela força evocadora da imagem – a palavra encarnada, recriando
a experiência.
O jogo sonoro, já no título, é um princípio de espanto que vira encanto
ante a visão do poema surgindo entre mágico e incandescente. A cor do coral se
mistura à mobilidade das coisas,
esparrama-se pelo colo da menina, confunde-se com o estado de alma.
Em “colunas da colina” a combinação sonora e imagética atinge o máximo de
efeito: o fonema “l” aponta para os ares dando a idéia de altura.
Palavra-visão: presentifica o ser nomeado, ao mesmo tempo que o reveste com o
pó criativo, dando-lhe a face estranha que provoca a surpresa e o prazer.
O sol completa a incandescência:
põe coroas de coral
nas colunas da colina
E eis que o poema não termina: incendeia!
As palavras criadoras desalinham o real para realinhá-lo sob a ótica do imaginário
em que contam a liberdade, o prazer, a invenção.
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