Afeto, aventura e amizade na Literatura Infantojuvenil catarinense
Rua Âmbar
(Formato, 2013) é a publicação infantojuvenil mais recente da escritora
catarinense Eloí Bocheco. Na trilha dos últimos Casa de Consertos (Melhoramentos, 2012), Tua mão na minha (Habilis, 2012) e Cantorias de Jardim (Paulinas,
2012), o livro é bem cuidado, com ilustrações primorosas de Márcia Cardeal e um
projeto gráfico adequado.
A história é dividida em treze
capítulos, numerados e não titulados e se desenvolve em Mariscal, praia
catarinense. Eloí recolhe elementos do dia-a-dia do lugar (ruas da referida
praia, detalhes da vida dos pescadores,
dos moradores, dos veranistas) e os utiliza como peças importantes no esquema
narrativo que monta.
Miro, ou melhor, Valdomiro
Silveira, o protagonista da história é um menino que vive a infância com
intensidade. Quando se apresenta aos
amigos veranistas diz que “o pai é Leopoldo e trabalha na pesca, a mãe é Inês e
vende peixes, que mora na rua Ametista, estuda no terceiro ano, adora a rua
Âmbar e faz miniaturas de latinhas” (p. 34).
Mas o que significa viver a
infância com intensidade, no caso de um menino filho de família simples, e
quase sem amigos? Significa ter tempo e espaço para brincar. Os pais de Miro têm
noção da importância que o brincar criativo tem na vida do menino. Isso fica
evidente em vários episódios da história, mas, em especial, no capítulo quatro,
quando Miro abandona o trabalho de limpar peixes e sai, a mando do pai para
brincar: “Em geral o pai lhe dá uma tainha e uma anchova para limpar, às vezes,
dois ou três peixes pequenos. Em seguida diz que já pode ir brincar” (p.9); e
quando a mãe compara o brincar ao trabalho das abelhas: “- Olhe ali as abelhas
no canteiro de cravinas, colhendo néctar. Criança brincando é abelha colhendo
néctar. Brincadeira é néctar armazenado na alma”(p.9). Os pais de Miro, ao
compreenderem a importância do brincar na vida do filho oferecem ao menino o
ambiente facilitador para a brincadeira. Proporcionar tal ambiente é, para
Marina Marcondes Machado (2004), função dos adultos em relação às crianças.
O espaço que o menino possui para
brincar é a própria Mariscal, com suas ruas, casas, árvores, areia e mar. O
personagem transita livremente pelos vários lugares da praia. Leopoldo e Inês
compreendem que “uma criança livre, feliz, brinca quando come, sonha, quando
faz seus pequenos discursos poéticos” (MACHADO, 2004, p. 19).
Quem acompanha a narrativa de
Eloí percebe que brincar é produzir, fabricar, criar, e que essas experiências
tornam lúdico o olhar de Miro para o mundo. É a partir deste olhar que o menino
filtra a vida que lhe cerca.
Já no início da história, o
leitor é informado que Miro possui uma habilidade interessante: fabrica
miniaturas de objetos com latinhas de refrigerante. A “fábrica”, como são
chamadas as duas caixas de madeira onde guarda seus materiais fica “localizada
em um endereço de acesso restrito. E mais, Miro dorme em cima da fábrica. Ou
melhor dizendo, ele dorme e acorda em cima dela, por que ela fica debaixo da
cama dele” (p. 5). A imaginação de Miro somada à força do maravilhoso na
história, resulta em cenas nas quais, curiosamente, os objetos guardados
embaixo da cama conversam.
Catar e saborear pitangas pretas
é uma das atividades preferidas do menino. Mas sabe que deve se apropriar
somente das que ficam do lado de fora dos muros das casas. Ensinamento do pai
Leopoldo, por quem Miro tem carinho e afeto especial. Miro admira o pai pescador, ao mesmo tempo que
lamenta a vida sofrida que ele leva:
“-Por que não larga a vida no mar e vai fazer
outra coisa, pai?
- Sou um homem do mar. Devo ter sido peixe em
outra vida.
(...)
- Você nunca passeia, nunca se diverte, pai.
- Minha diversão é por meu barco no mar.
- Mas por causa do sol e da água salgada seu
rosto está todo franzido.
- Filhos do mar, feito eu, ficam assim mesmo,
Miro (p. 12).
O protagonista não deseja ser
pescador como o pai. Mas possui “alma de peixe”, como ele, e por isso projeta para
si uma profissão parecida:
“-
Quero trabalhar no mar, mas não como pescador. Quero ser um pesquisador, um
estudioso de tudo o que existe no fundo do mar.
- Gostei dessa ideia.
- Aí eu também serei um homem do mar feito
você” (p. 12).
A estima pelas profissões do mar é
a manifestação do desejo de Miro em ser como o pai. Não quer ser pescador, mas
alguém instruído, “um homem do mar com diploma”, como brinca Leopoldo. A paixão
pelo mar uniria assim, pai e filho.
É na Rua Âmbar que grande parte
da história acontece. Os melhores pés de frutas estão na Âmbar. A casa do poço,
a mais misteriosa da região, também. Trata-se de uma casa abandonada, que Miro
tentou conhecer três vezes e só na quarta vez teve coragem suficiente para
entrar. Em um quarto encontrou uma formiga ruiva falante, que por sinal, já
conhecia sua fábrica. No outro quarto encontrou um armário de onde saiu uma
cobra azul-turquesa. Conversando com a cobra ficou sabendo que ela tinha
nascido gaivota e se transformado em galho de árvore, pedra, chapéu, carta de
baralho... No terceiro quarto encontrou uma tainha com lindas escamas
reluzentes. Em seu cesto a tainha guardava miniaturas de lata que haviam sumido
do quarto de Miro. “Disseram que foram dar uma volta na Rua Âmbar e não acharam
mais o caminho de volta” (p. 23), explicou a tainha. Saindo da casa, Miro
encontra uma bruxa da Costa Esmeralda que veio buscar água do poço para seus
trabalhos de magia.
A narrativa de Eloí lembra o
mestre Lobato, já que a autora anula as fronteiras entre a vida real, conhecida
de perto pelo leitor, e o espaço do maravilhoso, que é próprio da Literatura
para crianças. Sobre essa ocorrência em
Lobato, Nelly Novas Coelho afirma: “Suas histórias não decorrem em nenhum reino
maravilhoso, fora do tempo e espaço históricos (...). Pelo contrário, todas as
situações que estruturam as efabulações de cada livro radicam-se no mundo
cotidiano, familiar ao dia-a-dia da meninada” (2006, p. 642). Neste ambiente
conhecido e comum, “surge, de repente, um elemento estranho, pertencente ao
reino do imaginário, do sonho ou da fantasia. Mas devido à naturalidade com que
esse elemento estranho passa a integrar o natural, ambos se igualam ou se
identificam como possibilidade de existência (2006, p. 642).
Em Rua Âmbar, Eloí se utiliza do mesmo recurso. As miniaturas de latinha e demais objetos que
conversam entre si; a formiga-ruiva e a tainha de lindas escamas, ambas
falantes; a cobra azul turquesa que se transforma no que quiser; a bruxa da
Costa Esmeralda, entre outros elementos, são próprios da fantasia, surgem
naturalmente na história e se somam aos eventos cotidianos vivenciados por
Miro, promovendo a fusão entre mundo real e imaginário.
É na Rua Ambar que Miro conhece
os únicos amigos com quem ele vai se relacionar na história: Matita, Quim e
Isa. São veranistas, moram em Jundiaí/SP e o pai deles comprou a casa 109. Os
quatro vivem aventuras ciceroneados por Miro, que lhes apresenta a rua e a casa do poço.
A notícia da morte de seu
Leopoldo pegou todos de surpresa. “O barco bateu nas pedras e afundou. Ninguém
escapou” (p. 46). Miro sofre muito com a partida do pai. E agora, como iria
ser? E quando os peixes da peixaria acabassem, o que a mãe faria? ‘’Se ela
dizia que ia dar um jeito, então é porque ia mesmo. Ela era uma mulher de
confiança” (p. 48).
No último dia do veraneio de seus
amigos, Miro é convidado por eles para plantar um pé de ingá no pátio da casa
109. A árvore era uma homenagem a Seu Leopoldo. Miro imagina que o pai ia
gostar da homenagem. Ele se deu conta de que, curtido de sol e da água salgada
do mar, o pai fora se tornando parecido com um tronco de árvore. No dia
seguinte, após o café, o protagonista vai até a casa dos amigos para se
despedir. Presenteou-os com um barquinho, um jarro de lata e uma estrela do mar.
Voltariam no próximo janeiro, e isso deixava Miro feliz.
Na obra em questão, conhecemos
uma Eloí diferente daquela que diversas vezes já encontramos, cuja matéria
prima para a criação literária são as memórias da infância. Em Rua Âmbar, Eloí se mostra capaz de
mergulhar na infância dos meninos da atualidade e de utilizar elementos que não
lhe cercaram na sua época de criança, como a praia, o mundo dos pescadores e a
vida dos veranistas. Mas não deixa de emprestar a Miro o olho da menina curiosa
e atenta que imagino que ela foi e que ainda é. Aos olhos de Miro, nada passa
despercebido na Rua Âmbar, qualquer novidade é notada, por mais miúda que seja.
O texto da obra é fluente e com
linguagem acessível a partir do Leitor em Processo. Leitura envolvente. Desejo
que muitos leitores encontrem com Miro e passeiem pela Rua Âmbar. Nas escolas,
nas bibliotecas, nas rodas de leitura, nas sessões de leitura literária nas
escolas, enfim, onde estiverem leitores curiosos e sensíveis, ali Rua Âmbar pode figurar com majestade.
Referências
MACHADO,
Marina Marcondes. A poética do brincar.
São Paulo: Loyola, 2004.
COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico da literatura infantil/juvenil brasileira. São Paulo: Editora Nacional, 2006.
Mestre
em Estudos Literários. Professor de Literatura Infantojuvenil da Faculdade
Anglicana de Erechim/RS.