A minha vó é
tipo vó de todo o bairro. Poucos a chamam
de dona Sofia. Mais que a chamam é de vó. Não gosto muito desse negócio
de chamar de vó uma vó que é minha.
Ela se aposentou da profissão de enfermeira e abriu uma oficina de
consertos de brinquedos. A oficina fica junto com a casa de moradia, na sala da
frente, onde ficam também os livros que eram do meu bisavô.
A casa é a mais antiga da rua. É parecida com um casarão que vi num livro
de histórias quando eu estudava na primeira série. O casarão era de uma bruxa
sinistra e eu fiquei triste por ver que a casa da minha vó era parecida com
casarão de bruxa. Aí a minha mãe disse que vó Sofia era bruxa também, mas
daquelas que só fazem feitiços para a vida brilhar.
O casarão é cheio de lugares maneiros, tipo esconderijos. E tem o sótão,
de onde dá pra ver toda a cidade, mais o mar, as duas pontes e o bairro de
Coqueiros.
Junto com o casarão fica a marcenaria do
meu tio. Ele e o meu pai trabalharam juntos durante muitos anos. Depois
o meu pai casou com a minha mãe e foi
embora pra outra cidade, mas continuou trabalhando de marceneiro.
Para chegar na marcenaria basta passar uma porta e um corredorzinho. A
porta fica sempre fechada para não entrar pó-de-serra e também por causa do
barulho das máquinas.
Sempre eu passo as férias no casarão. Fico mais na casa de Consertos:
atendo telefone, sento num banquinho pra ver vó Sofia trabalhar, ou senão para
ouvir as histórias que ela conta, ou para conversar.
_ Vó Sofia, você queria ser um passarinho ou um jacaré?
_ Ah, um jacaré que não lava o pé.
_ Sério: se você não fosse você, o que gostaria de ser?
_ Acho que escolheria ser um tatu.
_ Tatu?
É. Tatus são engraçados, têm a carapaça dura e moram em tocas.
_ Também acho os tatus engraçados, mas qual é a vantagem de morar em tocas?
_ Ficam protegidos nas tempestades.
_ Isso é. Eu queria ser um bicho do ar, tipo andorinha, bem-te-vi,
canário...
_ Você aí me
perguntando que bicho eu queria ser, Olímpia, e eu aqui virada num caranguejo
ou numa tartaruga!
Ela fala isso por causa das pernas
dela que não andam mais direito. Ela se apóia numa cadeira de palha e vai
empurrando a cadeira pro tanque, pra cozinha, pra varanda, pro quintal, pro
jardim, pra Casa de Consertos, onde senta, esquece as pernas de caranguejo e
trabalha no conserto dos brinquedos. Faz milagres pra emendar o que tá
quebrado. Parece que os brinquedos nascem de novo das mãos da minha vó.
Vai trabalhando e conversando com os fregueses ou com pessoas que estão
só de passagem pela Casa de Consertos. E nunca deixa de receitar um “remedinho
literário” como ela diz.
Para dona Clarice, que estava se separando do marido e estava na maior
deprê, ela receitou um livro de poemas de Mário Quintana. Para dona Clara, que
estava achando o mundo um caos, ela deu um Manuel Bandeira enorme. A dona Clara
levou quase um ano pra ler todo aquele livrão. Para o Carlos, que sofre de falta de leitura, nunca
leu um livro na vida, ela emprestou um livro do Josué Guimarães. Para dona
Leninha, que sofre de trocas, tipo assim: diz sim quando quer dizer não , e diz
não quando quer dizer sim, ela indicou o livro Solte os Cachorros, da escritora
Adélia Prado. Para o seu Eduardo que
disse que o deserto do Saara tinha se mudado pro coração dele, ela emprestou um
livro da Cecília Meireles. Para cada caso ela receita um autor. Ela sempre dá
um jeito de botar perto dos livros os que vêm à Casa de Consertos. Diz que
livro é como o pão nosso de cada dia para a alma, e que alma vazia não pára em
pé e pode cair nalgum abismo, ou na boca
de algum crocodilo de plantão.
Quando era enfermeira, ela vivia com uma malinha cheia de livros que lia
pros doentes, ou dava na mão deles pra
lerem e se animarem, ou senão pra conhecerem histórias que tinham a ver com a
vida deles. Quando a minha mãe deixava eu ia com vó Sofia ao hospital infantil
e ajudava a ler os livros para as crianças.