terça-feira, 7 de setembro de 2010

Educadores: memórias literárias e práticas leitoras em classe

Joelma Magrinelli Susin atua como professora há treze anos. Nesse tempo, lecionou para crianças do ensino fundamental, em diversas escolas públicas da região oeste de Santa Catarina.Trabalha, atualmente, como coordenadora pedagógica  no Centro de Educação Infantil Estrela do Amanhã, no município de Zortéa/SC. Joelma formou-se em Pedagogia pela Unoesc e fez pós-graduação em Educação Infantil. Gentilmente aceitou compartilhar suas memórias de leituras e sua experiência como mediadora de leitura.

Como foi a sua relação com os livros na infância? Como o descobriu? Quem a incentivou a ler?

Até os seis anos de idade, período que antecede a entrada na escola, morei no sítio com minha família (pai, mãe e dois irmãos).Tive uma infância tranquila e humilde, com poucos brinquedos, mas com espaço maravilhoso para brincar, muito amor e carinho recebido dos meus pais. Relacionava-me pouco com outras crianças, além dos meus dois irmãos. Aguardava ansiosa o momento de entrar na escola que, para mim, representava algo mágico.

Quando completei cinco anos, meu irmão começou a frequentar a escola e, em casa, começou a realizar as atividades escolares, às quais eu queria fazer também. Então, a partir deste momento comecei a ter contato com o material escolar dele, inclusive com uma cartilha que, para mim, era algo fabuloso, pois eu nunca tinha visto um livro antes. Ele faltava bastante às aulas, pois morávamos seis quilômetros longe da escola e era preciso ir a cavalo. Minha mãe auxiliou no processo de alfabetização dele com muita dedicação, embora ela tivesse simplesmente completado a quarta série do primário.

Em nossa casa não existia nenhum livro, apenas uma pasta de meu pai com revistas estilo Globo Rural, mas que não podíamos mexer. Ouvíamos histórias, contadas por meus pais, à noite, ao redor do fogo, as quais eles tinham ouvido de nossos avós. Nesta fase, estas histórias realmente eram uma necessidade para nós, era maravilhoso ouvir. Referiam-se a fatos folclóricos e tinham a função de ensinar-nos algumas lições, sobre o que poderíamos ou não fazer. Meus pais eram bastante protetores e tinham muito necessidade de impor limites.

Neste mesmo ano, algo surpreendente aconteceu: recebemos a visita de um tio, que era professor e até hoje é muito especial para nós. Meu irmão, que já frequentava a escola recebeu como presente seu um pacote com várias literaturas maravilhosas, nunca vistas antes, pois até então eu só conhecia a cartilha. Jamais esquecerei os títulos, aliás, nem meus irmãos esqueceram: "O Patinho e a Pena", "Pinote o Fracote e Janjão o Fortão", "A Zebrinha", "O Gato do Mato e o Cachorro do Morro", "O Jogo do Contrário". Minha mãe lia e relia para nós, criávamos histórias ,manuseávamos os livros diariamente. Este presente marcou muito minha vida. Lembro-me de sentimentos que os fatos das histórias despertavam em mim que,  até hoje, se eu olhar as imagens, ou ler trechos das histórias, volto-me à infância. Encontrei estes mesmos livros numa escola, quando comecei a lecionar e foi realmente mágico, não tive como conter as lágrimas. Foi como se eu tivesse reencontrado um tesouro precioso perdido, realmente muito valioso. Considero esta a primeira sementinha que foi plantada em minha infância, antes da escolarização, que permitiu-me o primeiro contato com o mundo maravilhoso da leitura, pois pude sentir o primeiro gostinho da delícia que é manusear os livros e ouvir histórias.

De que modo que a escola auxiliou você a criar uma memória de leituras? Seus professores eram leitores? A escola tinha uma biblioteca atualizada, com bons acervos e atendentes dinâmicos? Houve algum mestre, em especial, que influiu na criação de sua memória de leituras?

Iniciei a 1ª série do primário em uma escola multiseriada, tendo como base teórica uma linha pedagógica extremamente tradicional. As estratégias se restringiam à cópia de letras e palavras. A professora não contava histórias, apenas lia pequenos textos, de três a quatro linhas, utilizando uma régua para que seguíssemos sua leitura.
A partir do 2ª semestre estudei na E.E.B. Major C. Rodrigues de Almeida (Zortéa) e lembro-me de uma cartilha maravilhosa do “Barquinho Amarelo”. Líamos um trecho por dia e era uma delícia. A professora D. Elza Mello era leitora e gostava muito de contar histórias para os alunos.
Nos anos seguintes, utilizávamos livros didáticos para a realização das atividades e havia muitos textos interessantes. Lembro-me que eu amava quando a professora permitia que trouxesse o livro para casa, pois assim eu podia adiantar a leitura dos textos seguintes. Posso citar como textos marcantes desta época “O Bosque Encantado”, “A Galinha dos ovos de ouro”, o poema “A bailarina”, “João e o pé de feijão”, “O pato”, dentre outros.
Um fato marcante, e que considero um incentivo à leitura, foi uma premiação que recebi ao término da 2ª série, por ter sido classificada entre os quatro melhores alunos da turma: o prêmio era um livro, intitulado “A Ilha Perdida”, com uma história maravilhosa, pois transmitia o entendimento sobre as relações econômicas, físicas e sociais de um país, sempre com exemplos concretos. Nesta época, não sei se a escola dispunha de biblioteca, acredito que sim, porém nunca fomos visitá-la ou sequer levávamos livros para realizarmos a leitura em casa.
Durante o ginásio, estudamos na “Escola Nova”, reconstruída, pois a antiga havia sido devastada pelo vendaval. Foi um período de pouco incentivo à leitura. Os professores utilizavam a leitura de textos, como pretexto para trabalhar a gramática. Não havia incentivo à leitura de livros diversos. Lembro-me que eu freqüentava muito a biblioteca da escola, que não tinha atendente, e lia bastante em casa. Gostava muito de livros de aventuras, que despertavam o sentimento de liberdade, o senso de justiça e solidariedade. Lembro-me de uma professora que leu “O Joelho Juvenal” (Ziraldo) e solicitou que fizéssemos o reconto. Esta atividade foi muito prazerosa e marcante, pois sempre amei escrever.
Freqüentei o Ensino Médio no C.E. Mater Dolorum (Capinzal), no Curso de Educação Geral, e tive incentivo à leitura através da professora Mariliza Gasparetto que, com sua doçura, trabalhava a história da literatura, através de bons textos e dicas de leitura. A biblioteca era maravilhosa, nunca tinha visto algo tão espetacular: estantes com livros dispostos e organizados por gêneros, a bibliotecária sempre sorridente e conhecedora das obras. Nesta fase, gostava muito de ler as crônicas da Revista VEJA, era hábito, lia todas.
Finalizando o Ensino Médio, por questões financeiras, fiz Magistério, pois não pude ingressar na faculdade. Iniciei a leitura teórica no campo educacional, onde me identifiquei muito. A escola realizava muitas ações de incentivo à leitura; os professores eram grandes leitores, dinâmicos e criativos. Eu também amava ler literatura infantil, estudamos muito sobre as formas de contar histórias para as crianças e sua importância no mundo infantil. (Lia muitas histórias infantis para minha irmãzinha, que tinha cinco anos).
Nesta época, talvez por já ter desenvolvido uma visão mais crítica e autônoma, por questão de maturidade, comecei a perceber a real função e importância da leitura na vida das pessoas.
Qual foi o lugar dado à reflexão sobre as questões da formação de leitores, da importância do livro e da leitura em seu curso de graduação? E qual foi o lugar dado à literatura infantil e juvenil, no currículo de sua formação?

Cursei o Ensino Superior na Universidade do Oeste de Santa Catarina – UNOESC, curso de Pedagogia. Os professores, de forma geral, sempre fizeram uso da leitura como estratégia metodológica das disciplinas, alguns de forma mais intensa, outros menos. Acredito que durante minha formação acadêmica sempre ocorreu incentivo à leitura, sendo esta base para todo conteúdo trabalhado.
Algumas disciplinas nos favoreceram a reflexão sobre a nossa função, enquanto educadores, em desenvolver ações que visem a formação de alunos leitores, capazes de agir na sociedade com autonomia e criticidade.
Durante o curso tivemos contato freqüente com a literatura infantil, embora no currículo conste somente uma disciplina de “Literatura Infantil”, ministrada pelo professor Peter O’ Sagae. Esta disciplina foi marcante, pois aprofundei o conhecimento acerca da importância da leitura, conhecendo uma nova forma de ensinar.



Como descobriu a poesia infantil para si mesma e para seus alunos?

Sou leitora e gosto muito de poesia, especialmente dos poemas infantis. Concebo-os como textos gostosos de ler, que se saboreia aos poucos e que vêm carregados de muita sensibilidade, sabedoria e imaginação. Enquanto professora fazia uso, quase que diariamente, dos poemas infantis: era o tempero para os meus planos de unidade. As crianças gostam muito; a leitura de poemas amplia o próprio vocabulário, instiga a criatividade, estimula o gosto pela escrita. É uma prática maravilhosa.
Descobri a poesia infantil na graduação, com um professor de Literatura Infantil, que trabalhou conosco de uma forma maravilhosa. Nesta época li muitos poemas e, inclusive, selecionei o poema “Experimente”, do livro “Uni Duni Téia” para realizar uma análise. Comecei a introduzir a poesia com maior freqüência em meu planejamento.
A meu ver, as escolas deveriam desenvolver ações que promovessem o gosto pela leitura, atingindo também os pais. É um trabalho sistemático, que requer tempo, dedicação e os frutos são colhidos a longo prazo: talvez por este motivo as escolas, de forma geral, fazem pouco uso da poesia. Penso que os professores deveriam ler mais. É preciso ser leitor para instigar o gosto pela leitura. Acredito muito na idéia de que o professor ensina a partir da própria vivência.
Acredito que estimular a criança a encontrar o prazer na leitura é papel da escola, uma vez que a família, infelizmente, não o faz. Esta ação é, acima de tudo, nossa função social, sabendo da importância da leitura para a vida do ser humano, na formação de sua autonomia e criticidade. E é por este motivo que vale a pena ser professor

Como professora, você lecionou para várias idades. Como foi o trabalho com leitura nas diversas turmas em que você atuou?

Sempre procurei inserir a leitura na metodologia de trabalho, buscando estimular os alunos a gostarem de ler e, na Educação Infantil, a apreciarem a leitura.
De acordo com a minha experiência profissional, as ações de incentivo à leitura trazem resultados mais imediatos na Educação Infantil e Séries Iniciais. As crianças adquirem o gosto pela leitura de forma que o trabalho torna-se gratificante ao professor, enquanto que nos demais níveis os alunos já demonstram outros interesses. Quem é leitor permanece pela vida afora. O professor deve ser muito persistente e utilizar estratégias diversificadas. Assim, defendo a idéia de que os estímulos à leitura devem acontecer já nos primeiros anos de escolarização.
Durante estes anos como professora, ouvi muitas e muitas vezes os alunos de Educação Infantil pediram para recontar a história ou o poema, e é muito gratificante perceber os olhos das crianças fixos no livro, por gostarem da leitura; visitar a biblioteca com as crianças das Séries Iniciais e perceber que elas gostam, trocam idéias sobre livros e pedem dicas de leitura; organizar um recital de poesia na sala; trabalhar com diferentes tipos de textos, todos estes são momentos muito especiais.
Particularmente, amo literatura infantil e juvenil e já contei histórias infantis inclusive para o Ensino Médio. Meu prazer maior, enquanto professora e mãe, é de estimular “nossos pequeninos” a apreciarem a leitura, começando com as turmas do berçário, que já desenvolvem a leitura visual de imagens.


Como você e seus alunos se relacionam com a biblioteca e qual é a importância deste espaço para seu trabalho como professora?

A biblioteca escolar é um espaço especial e o livro um recurso que promove o contato do leitor com o mundo que nos cerca. O livro é produção cultural, é comunicação, diversão e informação. Estes conceitos devem ser trabalhados na criança, para que reconheça a importância do livro e da biblioteca escolar.
Nem sempre trabalhei em escolas com bibliotecas que possuíssem um bom acervo, infelizmente. Porém, sempre procurei valorizar o espaço que a escola dispunha, para que os alunos pudessem aproveitá-lo ao máximo.
Acredito que a biblioteca é o 1º espaço que o professor deve visitar ao iniciar seu trabalho numa determinada escola. Pelo menos é o que eu sempre fiz. E como é gostoso visitar a biblioteca e transmitir para a criança esta sensação maravilhosa que o contato com o livro nos traz.
Trabalhei em uma Escola Isolada, de pré-escola, por três anos, onde a biblioteca era uma estante velha de madeira, na própria sala de aula. Para diversificar, eu trazia literaturas emprestadas de outras escolas. O momento mais prazeroso da aula era a hora de fazer a rodinha no cantinho da leitura para ouvir histórias. As crianças gostavam muito. Neste ano, surgiu a idéia da “sacolinha do conto”, sendo que as crianças levavam para casa e os pais liam para elas, o que deu um resultado muito bom.




Você diz muito bem: “ é preciso ser leitor para instigar o gosto pela leitura”. Além do acesso ao livro, ( sabemos que somente isto não basta), quais são as dicas da professora e leitora Joelma M. Susin para a criação de uma tradição de leitura, de uma cultura de leitura forte e maciça em uma vila, em uma  cidade, em um  Estado, em um país?



A tarefa que compete a nós, profissionais da educação, não é fácil, mas também não é impossível. A primeira dica que considero imprescindível é o comprometimento do professor em desempenhar a sua função  de estimular o aluno a gostar de ler e reconhecer a importância da leitura para sua vida como uma necessidade.
Os projetos de leitura, envolvendo toda a escola,  são muito válidos, mas precisam ser contínuos, pois os frutos são colhidos a longo prazo.
Outro aspecto fundamental é a biblioteca escolar. A biblioteca escolar deve ser um espaço valorizado pelo professor, visitado freqüentemente e bem aproveitado. É preciso convidar os pais para que visitem a biblioteca escolar, mostrando-lhes a importância da leitura para a vida do indivíduo.
É indispensável que a escola trabalhe em parceria com a família e possibilite aos pais momentos que envolvam a leitura de diferentes tipos de textos, juntamente com as crianças, ou através de encontro de pais na própria escola. A criança precisa ver os pais lendo, para também gostar de ler, lembrando que suas ações se espelham nas ações da família, como primeiro grupo social de convívio e, posteriormente, na escola.
Neste ano, adotamos os textos informativos para os pais, que lhes são enviados semanalmente, na agenda dos filhos, para que os pais leiam e assinem, lembrando que a agenda escolar é o vínculo de comunicação entre a família e escola. Os textos referem-se às atitudes que os pais devem ter nas relações familiares, a respeito da fase na qual a criança se encontra. É uma forma de favorecer informação aos pais, trabalhar em parceria e promover-lhes um momento de leitura, onde estarão desenvolvendo esta habilidade e os filhos participando deste momento.
Na escola pública, os estímulos devem ser muitos e, com certeza, os professores precisam fazer também o papel da família e ir além, resgatando os pais neste trabalho.
Como surgiu, como funciona o Projeto de leitura “Sacolinhas do Conto” que você desenvolve com suas classes?

O projeto “Sacolinhas do Conto” surgiu no ano de 2005, quando trabalhava como professora de Educação Infantil numa escola de interior, como citei anteriormente. Acredito que o professor precisa fazer o diferencial na vida das crianças, promovendo-lhes a interação com o mundo que as cerca.
Nesta época, as crianças levavam para casa a sacolinha uma vez por semana, sendo que cada aluno tinha a sua. Pedi pra minha mãe confeccioná-las para mim. Os alunos ficaram muito contentes. Os pais contavam as histórias para as crianças, que faziam o reconto na sala de aula.
Atualmente, em 2010, decidi retomar este trabalho como ação que faz parte do meu projeto na coordenação pedagógica “Estimulando o gosto pela leitura na Educação Infantil”. Cada turma tem uma sacolinha e cada dia um aluno é sorteado e a leva para casa, para que seus pais, avós, tios, contem para os mesmos as histórias. Na escola, as professoras organizam uma dinâmica para que a criança reconte a história que ouviu. Este recurso nos trouxe bons resultados; ouvimos depoimentos de pais que nunca tinham contado histórias para os filhos e que experimentaram como é maravilhoso este momento. As crianças aguardam ansiosas o sorteio da sacolinha para poderem levar o livro para casa.
Deste projeto ainda fazem parte outras ações, tais como: momento da leitura na sala de aula, como estratégia do professor, dramatizações dos alunos, através de poemas e histórias , apresentações dos professores, utilizando histórias, e estamos organizando a I Noite Literária da Educação Infantil, prevista para setembro, onde as crianças e professores farão apresentações de literaturas para seus pais.

Um livro inesquecível....
Vou citar "Capitães de Areia", que li aos 16 anos, época em que comecei a refletir sobre as questões sociais de nosso país, as diferenças que tanto nos afligem.

Mais tarde, encantada com a profissão, a leitura de "Pedagogia da Autonomia", de Paulo Freire foi fantástica! Foi um diálogo com o autor, que falava justamente o que eu queria ouvir.