quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Consertos, afetos, esperança


Mensagem da Professora Dra. Sueli de Souza Cagneti a partir de sua releitura do livro Casa de Consertos ( Melhoramentos, 2012) 


Trecho da obra Casa de Cosnertos:

  Capítulo I

A minha vó é tipo vó de todo o bairro. Poucos a chamam  de dona Sofia. Mais que a chamam é de vó. Não gosto muito desse negócio de chamar de vó uma vó que é minha.

Ela se aposentou da profissão de enfermeira e abriu uma oficina de consertos de brinquedos. A oficina fica junto com a casa de moradia, na sala da frente, onde ficam também os livros que eram do meu bisavô.

A casa é a mais antiga da rua. É parecida com um casarão que vi num livro de histórias quando eu estudava na primeira série. O casarão era de uma bruxa sinistra e eu fiquei triste por ver que a casa da minha vó era parecida com casarão de bruxa. Aí a minha mãe disse que vó Sofia era bruxa também, mas daquelas que só fazem feitiços para a vida brilhar.

O casarão é cheio de lugares maneiros, tipo esconderijos. E tem o sótão, de onde dá pra ver toda a cidade, mais o mar, as duas pontes e o bairro de Coqueiros.

Junto com o casarão fica a marcenaria do  meu tio. Ele e o meu pai trabalharam juntos durante muitos anos. Depois o meu pai casou com a minha mãe e  foi embora pra outra cidade, mas continuou trabalhando de marceneiro.

Para chegar na marcenaria basta passar uma porta e um corredorzinho. A porta fica sempre fechada para não entrar pó-de-serra e também por causa do barulho das máquinas.

Sempre eu passo as férias no casarão. Fico mais na casa de Consertos: atendo telefone, sento num banquinho pra ver vó Sofia trabalhar, ou senão para ouvir as histórias que ela conta, ou para conversar.

_ Vó Sofia, você queria ser um passarinho ou um jacaré?

_ Ah, um jacaré que não lava o pé.

_ Sério: se você não fosse você, o que gostaria de ser?

_ Acho que escolheria ser um tatu.

_ Tatu?

É. Tatus são engraçados, têm a carapaça dura e moram em tocas.

_ Também acho os tatus engraçados, mas qual é a vantagem de morar em tocas?

_ Ficam protegidos nas tempestades.

_ Isso é. Eu queria ser um bicho do ar, tipo andorinha, bem-te-vi, canário...

_ Você aí me perguntando que bicho eu queria ser, Olímpia, e eu aqui virada num caranguejo ou numa tartaruga!

           Ela fala isso por causa das pernas dela que não andam mais direito. Ela se apóia numa cadeira de palha e vai empurrando a cadeira pro tanque, pra cozinha, pra varanda, pro quintal, pro jardim, pra Casa de Consertos, onde senta, esquece as pernas de caranguejo e trabalha no conserto dos brinquedos. Faz milagres pra emendar o que tá quebrado. Parece que os brinquedos nascem de novo das mãos da minha vó.

Vai trabalhando e conversando com os fregueses ou com pessoas que estão só de passagem pela Casa de Consertos. E nunca deixa de receitar um “remedinho literário” como ela diz.

Para dona Clarice, que estava se separando do marido e estava na maior deprê, ela receitou um livro de poemas de Mário Quintana. Para dona Clara, que estava achando o mundo um caos, ela deu um Manuel Bandeira enorme. A dona Clara levou quase um ano pra ler todo aquele livrão. Para o  Carlos, que sofre de falta de leitura, nunca leu um livro na vida, ela emprestou um livro do Josué Guimarães. Para dona Leninha, que sofre de trocas, tipo assim: diz sim quando quer dizer não , e diz não quando quer dizer sim, ela indicou o livro Solte os Cachorros, da escritora Adélia Prado. Para o  seu Eduardo que disse que o deserto do Saara tinha se mudado pro coração dele, ela emprestou um livro da Cecília Meireles. Para cada caso ela receita um autor. Ela sempre dá um jeito de botar perto dos livros os que vêm à Casa de Consertos. Diz que livro é como o pão nosso de cada dia para a alma, e que alma vazia não pára em pé e pode cair nalgum abismo,  ou na boca de algum crocodilo de plantão.

Quando era enfermeira, ela vivia com uma malinha cheia de livros que lia pros doentes, ou  dava na mão deles pra lerem e se animarem, ou senão pra conhecerem histórias que tinham a ver com a vida deles. Quando a minha mãe deixava eu ia com vó Sofia ao hospital infantil e ajudava a ler os livros para as crianças.

 BOCHECO, Eloí. Casa de Consertos. São Paulo: Melhoramentos 2012