segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Leituras compartilhadas


Trecho de Beatriz em trânsito
( Dimensão, 2007)
CONVERSAS COM GUIOMAR
A mudança pra Santo Antônio dos Campos me pegou na metade da terceira série. Nunca pensei que eu ia sentir tanta pressa de chegar o outro ano, pra ir pra quarta. Por causa da Guiomar. Ela dá aulas nas quartas séries.
Sempre arrumo um jeito de ir na classe dela, no final das aulas. Ela fala com jeito de era uma vez... Quando entro na sala o meu olho vai direto pro armário bege perto da janela. É nele que a Guiomar guarda os livros que vejo os alunos dela lendo com caras de contentes. Na minha sala não tem armário bege, nem verde, nem amarelo, nem armário nenhum cheio de livros.
Ela viu o meu olho grudado no armário e perguntou:
_Você queria levar um livro daqueles pra ler em casa?
_ Queria.
_ Então vem cá, e escolhe um do teu agrado. O que você gosta de ler?
_ Gosto de um que tenha coisa pra rir e pra suspirar.
_ Ah, sei...
Ela me aponta um de capa azul, outro de capa com vários amarelos, e mais outro e mais outro. Este sim, e este não, este é cor de macarrão! Escolho um que é cheio de olhos de tigre na capa.
Na tua casa gostam de ler? – ela me pergunta enquanto coloco o livro na mochila.
_ Hum, se gostam! São agarrados em livros que nossa! Meus tios é mais com livros e revistas sobre agricultura porque eles cultivam plantas sem botar veneno e vivem querendo saber mais sobre isso.
_ Orgânicas.
_ É, isso aí. Então vivem lendo pra saber mais sobre esse negócio de orgânicas, como produzir mais , essas coisas.. Às vezes lêem outros livros também.
_ Anhã..
_ Tipo um livro que a namorada de meu tio Pedro deu pra ele ler e disse: Pedro, você precisa ler este livro, e botou na mão dele, chama-se As Mulheres que correm com os lobos o tal livro.
Ele não queria ler, reclamou que o livro tinha muita página, que, pelo nome, devia interessar pras mulheres e não pra ele: se as mulheres correm com os lobos ou com os tigres, o que que me interessa? – falou rindo. Ela insistiu , falou que interessava pra homem sim, que homem tinha que conhecer a alma feminina, pra saber ser companheiro e não um barba azul qualquer, desses que tratam a mulher como um parafuso de porta.
_ Eu te trato como um parafuso de porta , Lia? Eu faço tudo que você quer...
Pensei que ele não ia ler aquele livrão todo, mas leu, à noite, depois que fechava as contas dos orgânicos.
A minha vó é a mais ledora lá de casa. Tem sempre livro perto dela, e as minhas tias também. Menos a Rosana, a mais nova. Não que ela não goste de livro, o problema é que ela não tem tempo de tanto que namora. A cada semana ela vem com um namorado diferente. Os namorados da Rosana já ocuparam quase todas as letras do alfabeto. Até namorado com ipslon ela já teve! A gente cansa de dizer “prazer em conhecer” pra tanto namorado novo da Rosana. Se não puder dar as cartas, como diz a minha vó, a Rosana já despacha os namorados. É tanto tempo que a Rosana gasta pra ficar bonita pra esses namorados todos, que minha nossa, não sobra tempo pra muita coisa.
Quando vai se arrumar, às vezes ela me chama: venha cá, Biazinha ( detesto que me chamem de Biazinha) e me diga o que acha desta blusa ã? Eu sei lá de blusa? Digo que tá bonita e pronto.
Às vezes eu tô lendo e a minha vó fala: Beatriz, vai entregar umas encomendas pra mim?
_ Agora eu não posso vó.
_ Por que não pode?
_ Não tô em casa, tô em Taipirum.
_ Onde?
_ Em Tatipirum, na terra dos meninos pelados, não lembra do livro do Graciliano Ramos?
_ Ah, tá!
Ou senão eu digo que não posso ir fazer as entregas porque tô vendo um Namorinho de Portão...
_ Que namorinho, menina?
_ O de portão, do Elias José, ora!
_ Ah, claro!
Se tô com livro, ela não insiste pra eu entregar chapéu, nem bolsa, nem porta-retrato, nem de fibra, nem de linha, nem de vime. Como coisa que ela não quisesse me separar de livro por nada deste mundo.
A Leonor é super ligada em livros de bruxas, casas mal assombradas, fantasmas, esses lances de seres do além. Fala que as bruxas foram injustiçadas, queimadas na fogueira por pura ignorância. Que bruxa é devota da natureza, da terra, das plantas, das coisas do universo, enfim. Ela fez um oráculo no quarto dela e bota lá as coisas que vai aprendendo nesses livros: pedras, plantas e outras coisas que não me lembro. O quarto dela cheira alecrim. Sempre ela bota um galho de alecrim num copo de vidro claro. A minha vó não acha muita graça nesse negócio de oráculo de bruxas, ela é mais de religião de igreja, mas ela nunca contraria a filha. As duas são unha e carne.
A Leonor é uma moça meio nova, meio velha. É moça, mas não tão moça, sabe como é? Ela é mais alta do que você, Guiomar. Quanto é que você tem de altura?
_ 1,70.
_ Então ela deve ter 1.80, por aí. Pois é, com todo o tamanhão dela, de vez em quando ela deita no colo da minha vó e pede pra massagear os cabelos, porque tá triste. E a minha vó massageia, massageia. Às vezes a Leonor chora no colo da minha vó e eu não sei por quê. Tem umas coisas que parece que são mais de perguntar e não de entender.
A Guiomar alisa com a mão o meu chapéu:
_ É bonito. Que fibra é essa?
É de caule de bananeira. A minha vó e a Leonor fazem tudo que é coisa com essa fibra. Fazem coisas de vime e de linhas também. É assim: se a gente muda prum lugar que dá bem a bananeira, elas inventam coisas com o caule dessa planta, senão, elas inventam com vime, e senão elas fazem coisas com linha e agulha.
As mãos delas não param nunca de tirar coisas da fibra, ou do vime, ou das linhas. Ganharam um prêmio muma feira da cidade e aí mesmo é que elas se assanharam com esse negócio de trançar e tramar.
_ Pelo que você fala elas gostam mesmo de trançar e tramar...
_ Ih! elas a-do-ram.
_ E você gosta do quê?
_ Gostar de fazer?
_ É.
_ Ah, gosto de ficar olhando a minha vó trançar chapéu. Meu olho vai trançando junto com a mão dela. Ela termina um chapéu e o meu olho também termina.
Mas também gosto de fazer coisas com o olho olhando e a mão pegando, que nem arrumar os orgânicos nas embalagens. Gosto mais de arrumar o milho verde, a cenoura e a beterraba porque tem bastante cor, e dá mais graça ir empilhando numa pilha bem comprida.
Gosto de ir com a Rosana entregar os orgânicos nos supermercados, mas é só de vez em quando que a minha vó deixa. Demora um monte pra ela deixar. É por causa do roubo de crianças que ela tem medo. Fala pra não sair de perto da Rosana, andar agarrada nela, não dar confiança pra estranho, se se perder é pra ficar parada no mesmo lugar, que senão a Rosana não me acha, se chamarem pra tirar fotografia não é pra ir, se oferecerem bala de goma ( que eu adoro) não é pra aceitar.
A Rosana vai ligando a caminhonete e vai roncando e vai dizendo, eu sei, mãe, eu sei, mãe, e vai saindo porque senão ela nunca que termina de fazer as recomendações, e ainda grita alguma coisa de longe que a gente nem escuta mais.
Uma coisa que eu gosto, mas também, às vezes, desgosto, é de pensar nas palavras. Tem horas que não quero pensar, mas penso sem parar numa palavra, que nem luva, que é uma palavra que cabe, ou rio, que é uma palavra sempre indo. Já giz é a palavra com mais cara de giz que existe. Você não acha, Guiomar?
_ O quê?
_ Que giz tem cara de giz?
_ É verdade, giz tem cara de giz mesmo.
_ Por que será que a gente fica tipo perseguido pelas palavras?
_ Perseguido?
_ É. As palavras me perseguem. Tô fazendo os deveres e de repente me vem a palavra grisalho, por exemplo. Onde ouvi? Ah, sim, meu tio disse que tá ficando grisalho. Não quero pensar nessa palavra e penso. Preparo um copo de nescau pensando grisalho, pego o pão pensando grisalho, volto aos deveres pensando grisalho. Por que não me larga, grisalho? Meu pensamento fica pensando até não poder mais na palavra. (Vó, me acuda, que o grisalho quer me pegar. Quem? O velho do açude? Não, a palavra grisalho!) A Leonor diz que é o meu signo que me faz pensar tanto nas palavras, ( e não dá pra mudar de signo pro grisalho me deixar em paz?).
Uma vez a Leonor disse que a minha mãe entrou num redemoinho e não pôde mais sair, por isso tirou a própria vida. Foi eu ouvir isso e o redemoinho virou que nem o grisalho, não me largou mais. Me escondo na plantação de figos com o redemoinho atrás. Corro pra baixo das carambolas, o redemoinho me agarra. Não, não, cara de pavão! Mergulho na lagoa com o redemoinho girando, me jogo na grama e a grama tá cheia de redemoinho, rolo pelos morros e só ouço redemoinho, redemoinho. (Vó, socorro, o redemoinho tá acabando comigo! Como? Nem tá ventando, Beatriz. Mas, tá redemoinhando, tô dizendo, eu tô cheia de redemoinho. Será que ele vai me lavar como levou minha mãe moça, vó? Deixe disso, venha cá que vou te contar uma história que não tem redemoinho...)
A Guiomar se levanta pra fechar as janelas que já anoiteceu. Saímos pro pátio e eu digo tchau com pena de sair de perto dela.
BOCHECO, Eloí Elisabete. Beatriz em trânsito. Belo Horizonte: 2007, Páginas 20-23