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sábado, 10 de junho de 2017

Resenha de Peter O'Sagae para o livro Cantorias de Jardim



Vasculhando os livros guardados na memória, não encontro antologias que falem de flores para crianças, integralmente, fora um ou outro poema de exceção que não insista em suspirar a pétala perdida com a cor de rosa da infância ou repetir rimas óbvias por entre ingênuas borboletas, cores e olores. Realmente é uma temática difícil, quando pensamos que a generalidade das flores se tornou arranjo ou objeto de contemplação, símbolos de alegrias e desastres amorosos, inspirando bem poucos versos animistas, amigos, animados. Realmente, pensemos, para quê mandar flores para as crianças?

Claramente não concordo com o que diz o título dessa postagem, apenas sinto realmente um vazio de referências e corro aos livros que dormem na estante. Vez ou outra abro UM POUCO DE TUDO, de Elias José (1982), e encontro UM POUCO DE FLORES, em diálogo bem humorado com o leitor – a hortênsia, rainha da paciência, toda gordura, a triste violeta, a rosa que não é flor para qualquer poeta, o girassol aluado e as algas que embalam as criaturas do mar. Também tomo o irregular POETANDO FLOR, de Lúcia Pimentel Góes (1991), como um ramalhete de experimentações com a sonoridade e a espacialidade das palavras na página.


Uns vinte anos passariam para podermos colher e ouvir as CANTORIAS DE JARDIM, de Eloí Elisabet Bocheco com ilustrações de Elma (Paulinas, 2012). O livro traz temas e formas inspiradas na poesia de origem folclórica – quadrinhas e jogos dialogados, principalmente – junto aos textos que nascem na cabeceira ou na escrivaninha, entre a visão e a escrita particular da autora. São diferentes aromas que se mesclam nesse jardim de palavra e brinquedo.


Tem origem na fala popular os poemas dedicados às flores de nome e aparência às vezes mais simples, como camomila, margarida, cravo e rosa de todas as cores, açucena, jasmim branco, flor-de-maio e palma-flor – com um pé fixo nas cantigas e nos recortados das cirandas. Com a forma característica da trova, ocorre volta e meia a justaposição de dois versos iniciais com outros dois que vêm assinalar uma ruptura temática, mas também o forte paralelismo tão comum aos jogos da memória e do improviso. A terceira estrofe do primeiro poema, nesse sentido, é exemplar:
“O fogo quando se apaga
na cinza deixa o calor.
Camomila quando balança
esmalta o chão de flor.” (p.07)
Daí encenar o diálogo, como:
“— Rosa encarnada,
quem te incendiou?
— Foi o sol nascente
que aqui chegou.” (p.12)
Ou então fazer um cruzadinho com as figuras nos dois primeiros versos para fechar os dois últimos com uma provocação:
“Flor-de-maio no canteiro,
passarinho na janela.
O que espera, passarinho,
para beijar flor tão bela?” (p.38)
Da inspiração enraizada no folclore, passamos a ouvir cantorias da música popular brasileira. São três ou mais homenagens. O eu-lírico de Eloí Elisabet Bocheco diz assim: “Este lírio quem me deu foi Yara” aludindo à ciranda de Lia do Itamaracá; no mesmo poema, sai um verso, sai uma quadra inteira, para os irmãos Tonico e Tinoco:
“Sereno caiu no lírio
Sereno deixa cair
Sereno da meia-noite
faz tempo que foi dormir.” (p.24)
Talvez alguém se lembre ainda de uma marchinha de 1939 composta por Benedito Lacerda e Humberto Porto, A jardineira, ao ler o poema que fala da camélia que suspira no galho. Segundo Eloí, cai orvalho, cai perfume, cai nosso coração no laço, mas a flor continua lá, branca, roxa, arco-íris e luar... A ilustração de Elma, nesta abertura de páginas, dá conta de mostrar como as flores se animam e se agitam com asas de elfo, jeito de fada, cara de sílfide – uma alma, uma criatura florida é, ela mesma, a jardineira com regador na mão e a flor.


Em outros poemas, o ouvido sonoro da autora se distrai com ecos – e as marcas da poesia popular vão se diluindo. Estou a ler e a reler o tremor da hortênsia, o jasmim sonhador, delicadas as begônias, a petúnia breve e o hospitaleiro amor-perfeito. Se eu fosse um peixinho, talvez usasse apenas o verbo no pretérito imperfeito, porém morava num lugar onde vivem os sábios insetos – a borboleta, o grilo, a joaninha e outros, um lugar onde parece existir um “único amor sem defeito”.

Por fim, é preciso colher flores que nascem da experiência com a linguagem escrita, em que a estrutura e a divisão em estrofes mostram-se em formas variadas, com ritmos e dizeres também variados. É o caso dos poemas “Rei do jardim” e “O preferido” que dividem a mesma abertura das páginas em espelho; “Qual é a flor?”, pergunta Eloí, que são contas azuis, colares de luz, fino bordado... Temos aí nomes que deixo para o leitor descobrir.

Há ainda “Viva a sempre-viva!” que brinca com repetições de palavras e o deslocamento delas sobre o eixo sintagmático dos versos, por isso, o efeito venha a soar mais frio ou calculado do que todos os demais. Eixo sintagmático, eu sei, soa igualmente estranho e nem se preocupe se agora você não entender. É um festim de palavras pra lá e pra cá, lembrando cantorias da Tropicália em seus momentos de exaltação. É preciso estar atento e forte (porque) a sempre-viva só tem cores vivas!

E quase me esqueço do copo-de-leite em duas quadras que falam do luar e mereciam realmente o branco mais branco de uma página quase silenciosa de ilustrações. Ponto alto, no entanto, para quem conheceu Eloí cronista e tecelã de casos fantásticos nas colunas do jornal, é o poema que narra como surgiu a violeta: uma história que o eu-lírico traz gravada nas linhas da mão, uma história leve que fala de um velho profeta penteando as longas barbas na janela do céu, e fala também de um vento forte, de um riacho e seus peixes, de uma catadora de sementes e gotas, muitas gotas.


CANTORIAS DE JARDIM, o livro, tem projeto gráfico de André Neves. Muitas vezes as páginas funcionam em um ritmo quaternário, isto é, a cada duas aberturas, a ilustração impõe uma breve narrativa visual. Após a folha de rosto e o índice que trazem flores de pétalas brancas e miolos amarelos, vemos uma página sem desenhos e mais outra com duas dessas flores ao vento, emoldurando o primeiro poema; são flores de camomila ou são margaridas que se apresentam ainda na abertura seguinte, já o fundo amarelo, onde um personagem com pétalas e asas permanece em pé sobre o miolo da flor. Outro flagrante é a sequência pp.20-23. Elma desenhou um jardineiro com um imenso balaio às costas, caminhando da esquerda para direita, olhando rumo ao poema “Delicadas” – e viramos a página para encontrá-lo ao pé da namorada com um buquê de hortênsias nas mãos.

Outra narrativa também se revela nas imagens de Elma. Na abertura das pp.34-35, flores de jasmim-manga decoram os poemas “Petúnia” e “Jasmim”. Sentada à beira do rio que parece transformado em lagoa, uma menina de vestido azul e pássaro na cachola. Você pode dizê-la com nome próprio – Petúnia. Ou ler seu gesto de Ofélia, ou desconfiar que seja uma ninfa – Eco, enamorada de Narciso, invisível ao olhar e ao reflexo que deita na água.


Ora, não mandem flores para as crianças.
Elas poderão gostar.

Publicação do blog Dobras da Leitura, no endereço: 


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