A Professora e escritora Paula Belmino lê o segundo capítulo do livro Casa de Consertos (Melhoramentos, 2012)
Capítulo II
Meu pai foi morar pra lá
das estrelas. Eu tinha recém aprendido a ler e ele tava muito feliz. Ele falava
pra mim que ler era como tomar posse de um mundo novo.
_ Olímpia, leia pra mim
um livro. Quero ver se a tua vó te ensinou a ler direito.
_ E o que é ler direito,
pai?
_ É ler sem tropeçar nas
palavras.
_ Tá. Qual livro você quer
que eu leia?
_ Esse dali: Gato que pulava em sapato. O título é engraçado.
_ Quando termino de ler
ele me aplaude.
_ Agora eu escolho outro
pra ler pra você.
_ Claro, escolha.
_ Peguei Boi da cara preta e li o poema Guaraná com canudinho.
Ele riu um monte e
disse:
_ Quando eu era menino,
não tinha tanto livro infantil como tem hoje. Toda noite você lê um desses
livros pra mim, Olímpia?
_ Você que tem que ler
pra mim, pai!
_ Ah, é? Quem disse que
eu é que tenho que ler pra você?
_ Ora, porque sempre são
os grandes que lêem para os pequenos.
_ Mas, e se os grandes
querem conhecer os livros dos pequenos, não podem?
_ Podem. Eu leio pra
você e depois você lê pra mim , tá bem?
_ Então tá.
Tinha dias que ele tava
preguiçoso pra conversar, aí não queria conversa, nem leitura. Eu chacoalhava
ele e dizia: acorde, pai, que quero ler pra você a história de um bule azul
clarinho que é bem legal.
_ A... manhã, tá? Hoje
trabalhei como um condenado pra dar conta de um pedido de janelas que vai pra
Cuiabá. To moído, filha. Acho que vou dormir aqui mesmo no sofá. Você pode ler,
mas acho que não vou conseguir ouvir nem até a segunda página. Meu olho não
consegue ficar aberto... Leia pra sua
mãe, tá?
_ Hoje ela tem aulas até
as onze horas da noite. Vai chegar louca pra cair numa cama. Vou ler alto pra
mim mesma, então.
_ Tá, filha. Só hoje que
tô acabado.
Ele ficou acabado a
semana toda por causa das janelas que foram pra Cuiabá. Precisavam encomendar
tanta janela?
No sábado, ele tava
mais aliviado:
_ Hoje você pode ler a história da
chaleira azulzinha, tá?
_ Não é chaleira, pai! É bule azul clarinho.
_ Ah, eu tava quase dormindo naquele dia, não ouvi direito. Mas
hoje sou todo ouvidos.
Quando terminei de ler a história, ele disse:
_ Hum! Eu já tinha ouvido falar
de encantador de abelhas, encantador de cobras, mas de encantador de
bules nunca tinha ouvido falar, não. Gostei das quadrinhas que a moça vai
dizendo pra abrir o caminho pra casa do encantador. Como é mesmo aquela que
embola fita e fato, fato e fita?
_ É assim: - preste atenção, que não vou repetir:
Não sei se é fato ou se é fita
Não sei se é fita ou se é fato
Só sei que ele me fita
Me fita mesmo de fato.
_ Outro dia você lê de novo a história do bule azulzinho pra
mim, Olímpia?
_ Só se você não estiver acabado de tanto fazer janelas, ok?
No dia em que ele foi embora pra sempre a gente tomou café juntos,
pela manhã:
_ Olímpia, peça a tua mãe pra te levar na cabeleireira pra
cortar esse cabelo que tá caindo no teu olho.
_ Ih! Ela tá cheia de provas pra corrigir.
_ Então eu te levo amanhã à tarde. Hoje notei que você tá
precisando de um armário no teu quarto.
Tá cheio de coisas suas pelo chão e debaixo da cama.
_ É por falta de ter onde guardar.
_ Vou fazer um armário de duas portas, no capricho, pra você
guardar suas bugigangas.
_ Você coloca puxadores redondos nas portas?
_ Coloco.
_ E faz com pés altos?
_ Faço.
_ Faz as portas cheias de luas?
_ Com luas vai ser mais demorado. Estamos com muitas encomendas.
Liso é mais rápido.
_ Nem que demore, quero as portas com luas. E qual vai ser a
cor?
_ Clarinho. Vou fazer de MDF.
_ O que é isso?
_ São chapas de fibra de
pinus, de fino acabamento e grande resistência.
_ Então tá. Hoje na volta da marcenaria, você me traz
maria-mole?
_ Quantas?
_ Duas. De coco queimado, tá?
_ Tá.
Ele me deu um monte de beijos antes de ir.
Por que não dei mais beijos e abraços nele? Nunca mais eu o abraçaria vivo. A morte veio no meio da tarde e levou-o
embora. Eu queria ter as mãos do rei Midas, não pra transformar tudo em ouro,
mas pra ter acordado meu pai do sono sem fim.