terça-feira, 4 de maio de 2010

Na Sala com a Profa. Maria da Glória Bordini/UFRGS

Entrevista publicada nO BALAINHO - jornal de LIJ da UNOESC - em novembro de 2008
B – Como a sra. vê o panorama atual da literatura para crianças e jovens no Brasil?
Maria da Glória – A indústria editorial brasileira tem incrementado sua produção para crianças e adolescentes a cada ano, e devo confessar que a qualidade gráfica melhorou sensivelmente. Hoje temos autores vivendo de direitos autorais e um naipe de ilustradores que não ficam atrás de ninguém no exterior. As tiragens são elevadas, o número de títulos também, o que nos coloca numa posição invejável entre os países em desenvolvimento. Os problemas, entretanto, continuam repetitivos: a demanda não corresponde à oferta,por limitações econômicas do público, e a oferta, por sua vez inclui inumeráveis títulos cuja qualidade deixa muitas dúvidas. Os dois problemas exigem uma seleção mais criteriosa, que os agentes intermediários entre a criança e o livro poucas vezes conseguem efetuar, em virtude de sua formação cultural deficiente.B – Até que ponto a literatura infantil superou as marcas de origem, que a ligaram mais à pedagogia do que à arte?
Maria da Glória – A moderna literatura infanto-juvenil brasileira continua entregando às crianças dois tipos de obras: as que mal e mal ficcionalizam valores e informações considerados importantes por setores do universo dos adultos, e as que põem a arte acima de considerações pedagógicas e procuram dialogar sinceramente com o mundo infantil, reconhecendo e respeitando suas diferenças e valorizando suas características. Nos nossos melhores autores, assim como entre os bons escritores estrangeiros traduzidos, há uma sintonia fina entre autor-adulto e leitor- criança, tornando as obras ocasião de divertimento, atividade intelectual e emocional e crescimento pessoal. Essa espécie de autor descortina mundos como poderiam ou deveriam ser, eventualmente os simula como são, mas não “leciona” ideias aos jovens leitores.

B – Em que medida as publicações sob encomenda, direcionadas para o mercado escolar, prejudicam a “saúde estética” da LIJ?
Maria da Glória – Deve-se fazer uma distinção entre literatura paradidática e literatura infanto-juvenil. É conveniente e agradável para o aluno encontrar conceitos e dados científicos apresentados em linguagem atraente, com boas ilustrações etc, podendo até, na dependência do assunto, haver narratividade. O texto literário para crianças é de natureza diversa. É feito para ser apreciado esteticamente e não deveria confundir-se com o paradidático ou, mesmo, o didático. O prefixo “para”, no caso em pauta, significa “ao lado de”, um texto auxiliar da aprendizagem formal – nada tem a ver com literatura, que não quer ensinar. Sejam quais forem as funções sociais da literatura infanto-juvenil, entre elas não está o ensino. O meio escolar, entretanto, parece indeciso entre essas duas espécies de textos, o que acaba afastando o jovem leitor da literatura em si. Não é incomum, entre crianças e até entre adultos, a rejeição ao literário, por sua “inutilidade”, de modo que o prejuízo vem muito mais de uma mentalidade alimentada pela sociedade pragmática que nos modela do que da existência do paradidático em si.Cor do textoB – Ao seu ver, como é possível combinar a experiência estética com o ambiente escolar?
Maria da Glória - Onde, na sociedade brasileira atual, a grande massa de crianças pertencentes às classes desprivilegiadas terão experiências estéticas de valor se não for na escola ou em espaços recomendados por professores? Às famílias, quando muito lhes oferecem espetáculos televisivos em que o elemento arte é mais raro do que animais em extinção. Sem uma orientação escolar, a criança não irá freqüentar uma biblioteca, um museu, um teatro, estes últimos no caso de poder pagar o ingresso. A natureza é a experiência estética mais acessível, mas para essas classes, o natural vem poluído, sujo, enfeado. Portanto, se a escola não consegue propor experiências estéticas, esses alunos não as terão facilmente. E, afinal, não é tão difícil assim. Sempre há lugar na escola para histórias e poemas, livros com pinturas e esculturas, música erudita e popular, vídeos com filmes e documentários de elevado nível artístico, assim como devia haver aulas para aprender a tocar instrumentos, desenhar e pintar, fazer balé ou teatro. As escolas não se valem desses espaços simplesmente porque se acomodam, a pretexto de que o tempo não basta nem para ensinar as disciplinas informativas. Quando pensam nas artes, é para usá-las em benefício dessas disciplinas, mas essa já é outra vez a atitude utilitária, que mata o prazer estético.B – O que contribui para que um Estado consiga criar uma tradição forte de leitura, de valorização e paixão pela literatura, como ocorre em seu Estado, o Rio Grande do Sul?
Maria da Glória – Nossa experiência cultural, na área da literatura, se deve a uma aliança entre a Universidade, a escola e o circuito de produção do livro, assim como a um desejo de auto-afirmação dos gaúchos. Nas nossas universidades houve grupos de pesquisa que se dedicaram a pensar o ensino de literatura, a literatura infantil e a história literária regional ( os mais atuantes se originaram a partir do trabalho de anos da Profa. Regina Zilberman). A produção desses grupos repercutiu sobre a área escolar, mobilizou professores participantes das pesquisas, além de formar novos professores especialistas em textos para crianças, que multiplicaram esses conhecimentos. Resultados de pesquisas chegaram às editoras, alguns vieram a tornar-se livros e manuais, valorizando assim os autores locais, que foram registrados 3 comentados em livros de crítica e história da literatura. As escolas se valeram desses livros, unindo-se a elas o esforço de nosso Instituto Estadual do Livro, que veiculou essa produção crítico-histórica e promoveu a edição de autores esgotados e novíssimos, aumentando o número de obras em circulação e atingindo o in terior. A presença de autores da região, associada ao estímulo à leitura na escola e àquele preconceito que leva os gaúchos a se acharem ao mesmo tempo os mais bravos cidadãos e os mais ignorados pelo centro do país, determinou um aumento substancial de leitores jovens, os quais se tornaram adultos à sombra desse circuito cultural e constituíram o grande público que continua a promover a literatura e a leitura no rio Grande do sul. O importante é que as principais lideranças nesse processo não desistiram e nunca confiaram apenas na máquina do estado para promoverem a leitura.B – Qual é a sua avaliação sobre as políticas de leitura implementadas em nosso país?
Maria da Glória - Já houve muitas e louváveis políticas de leitura em âmbito federal e algumas poucas em âmbito estadual e municipal. Livros de literatura foram criteriosamente selecionados por equipes de especialistas e, publicados em vastas tiragens, deveriam ter alcançado crianças em todo o país. É claro que, nessa escala, nem tudo poderia dar certo. Houve corrupção promovida por editores visando à aprovação de seus títulos, houve barreiras burocráticas que deixaram livros empacotados em salas de escolas porque não havia biblioteca escolar, houve escolas não-beneficiadas, houve professores que preferiram não entregar livros aos alunos porque poderiam se estragar, mas não se pode negar que, desde os anos trinta, o Estado tentou promover campanhas de leitura cuja eficiência foi pontual e restrita. Levando em conta a expansão territorial do País, o problema é alcançar universalmente escolas e comunidades, no que os estados e municípios têm grande parcela de culpa, pois não promovem a leitura em sua esfera de atuação.B – Quem é o leitor hoje?
Maria da Glória - Se falarmos em leitor infantil, é o menino ou menina bem alfabetizados, a quem um professor leitor ( ou eventualmente uma família), interessado na cidadania cultural, levou a gostar de ler e a perceber que no escrito está a memória de todo o universo do conhecimento e da aventura humana. Esse leitor não está inserido numa classe social definida: pertence a qualquer camada que consiga acesso, seja pela compra ou pelo empréstimo, a livros cuja leitura seja empolgante, intelectual e/ou emocionalmente.